quinta-feira, 30 de dezembro de 2004

Escalador Mágico

O penedo ia crescendo e parecia fazer questão de tocar o azul do céu. Durante a marcha de aproximação, a mente do Escalador divagava preguiçosamente deixando ao corpo a tarefa de lidar com as rugosidades do carreiro e com as "farpadas" do matagal. Alheado dos gemidos que as botas iam arrancando ao chão e do coro de insectos, pássaros e demais criaturas que preenchem a Natureza selvagem, ponderava as razões que o tinham levado até ali. Apesar da dureza da tarefa não tinha sido obrigado, nem empurrado, nem manipulado, nem comprado; a responsabilidade era totalmente sua! Gostava da Montanha, do ar puro, de sentir a agilidade dançar debaixo da pele e, acima de tudo, do sentimento de participar do Todo quando saboreava alguma das suas vitórias no êxtase do pôr-do-sol.

Embalada pelo movimento rítmico da marcha, a caderneta de escalada dormitava na bolsa superior da mochila e nela, guardados como um tesouro, os registos das suas conquistas faziam companhia aos dos projectos futuros que cresciam a um ritmo bastante mais acentuado. Quando se lembrou dela, o peso sobre as costas pareceu aumentar e ele aliviou-o com um movimento de ombros. O horizonte tinha desaparecido para dar lugar a um paredão imenso e ele dirigiu-se, com passos decididos, para a base da via. Ainda sob o efeito da recordação, poisou a mochila, abriu automaticamente o fecho, e folheou a caderneta distraidamente. A modéstia dos seus primeiros objectivos roubou-lhe um sorriso e transportou-o para o tempo em que a crueldade dos companheiros não o poupava com troças e humilhações, os mesmos que presentemente deixavam cair os queixos perante as suas vitórias.
Tinha tido de libertar-se dessas cargas negativas, dos medos, dos preconceitos e doutras limitações, estabelecer objectivos simples, significativos, abrangentes, realistas e rigorosamente planificados; agora colhia os frutos desse trabalho compassado mas metódico e tenaz. Confiando cegamente no seu inconsciente e nas suas capacidades de auto análise, identificou e varreu literalmente do caminho todos os obstáculos ao seu progresso, não permitindo nunca acumular tarefas incompletas. Então a sua energia cresceu e actualmente realizava todos os projectos a que se propunha.

Visualizou a via em concentração total que se reflectia no seu corpo como uma dança ou um kata de artes marciais. Vestiu o arnês, pendurou cuidadosamente a bolsa de magnésio e encheu os porta-material com uma quantidade generosa, de expressos, "friends", entaladores e outros artefactos cuja utilidade deixaria qualquer leigo intrigado - afinal para um suicídio não seria necessário usar tanta "tralha"! Fez o "nó de oito", travou-o com o de "pescador duplo", verificou se ele estava seguro e bem "penteado" e finalmente calçou os "pés-de-gato"; depois aproximou-se da parede com um "estás pronto?" e quando recebeu o "ok" começou a subir. Longos metros decorreram até à segunda reunião de uma via desportiva bem equipada, sem surpresas para quem se tivesse treinado devidamente.

Então o Escalador preparou-se para uma segunda fase "em clássica"; tinha a convicção firme de conseguir, apesar do equipador a ter considerado impossível.
Ia tirar isso a limpo! Começou a progredir na parede virgem; as presas minúsculas e a distância obrigavam-no a um esforço imenso, os músculos inchavam e o corpo cobria-se de pérolas líquidas, mas o Escalador continuava. Fixos nos entaladores, três mosquetões oscilavam já abaixo de si, e sendo protecções precárias exigiam a segurança dum "friend". Um pouco acima e à direita podia ver uma fenda. Óptimo! Numa pose de equilibrista, soltou o "friend" com a medida adequada e activou o mecanismo de abertura enquanto se esticava completamente... Bolas, faltavam três miseráveis centímetros! Precisava de subir os pés, e a escassez de apoios era arrepiante, mas tinha de conseguir! Uma voz interior começou a tentar demovê-lo, estimulando o medo visceral num crescendo até este explodir na sua consciência. Antes que se transformasse em pânico, baixou mentalmente o som da voz e transformou-a num grasnar de "Pato Donald" tão ridículo que o obrigou a rir e quase o fez desequilibrar, depois subiu o pé esquerdo e repetiu os movimentos. Desta vez sentiu as cames aderirem às paredes da fenda, puxou a corda da cintura, passou-a na protecção com um suspiro de alívio e continuou a penosa ascensão.

Quando voltou a encontrar as tiges da via desportiva foi invadido por uma enorme alegria, mas não pode deixar de recordar que a terceira fase era extraordinariamente dura e que um imenso extraprumo se erguia acima da sua cabeça, ocultando o céu. Sem se deixar intimidar, respirou fundo duas ou três vezes e recomeçou a subir. Dos recessos da sua memória emergiu frase "Onde houver uma Vontade, há um Caminho" - o lema dos escaladores, alpinistas bem como o de todos os que se recusam a ficar do lado do Efeito - e com ela a certeza íntima de mais uma vitória.

Abaixo já se perfilavam diversos expressos e de repente tinha chegado ao Crux: o passo mais difícil da via. A forma correcta de abordá-lo consistia num movimento dinâmico, um salto que lhe permitiria alcançar uma pequena plataforma. Concentrou-se, levou uma mão ao saco de magnésio e depois a outra; realmente não as sentia húmidas mas o ritual invocou toda uma série de experiências anteriores muito bem sucedidas, e sentiu que uma fonte inesgotável de energia se tinha derramado sobre o seu corpo massacrado, tornando-o mais leve e flexível. Dobrou as pernas e lançou-se para cima sentindo o conforto dum rebordo nas palmas das mãos. Subitamente, o movimento de reequilíbrio fez escorregar a mão apoiada na zona mais lisa e viu-se suspenso no vazio apenas pela outra. Ignorando a bocarra escancarada do abismo abaixo de si, as vozes dissonantes que tentavam corromper a sua confiança e os lamentos dos seus fatigados músculos, voltou a agarrar a presa e tremendo com o esforço, elevou-se até conseguir trepar para a plataforma.

Executou os movimentos finais com facilidade mas também com cuidado e concentração, sentindo na boca o sabor salgado que algumas lágrimas mais pesadas, rolando pelas faces, iam arrastando dos olhos, e protegeu o "top". Será que o sabor das vitórias difíceis nunca é doce?!

Enquanto descia com gestos mais ou menos automáticos, contemplou a longa linha de acontecimentos que se ia reorganizando no seu futuro, criando espaço para possibilidades com que nunca tinha sonhado antes e que lhe permitiriam atingir a Excelência na Escalada e na Vida! Seria também um modelo para outros Escaladores!

Exausto, deixou-se cair para apoiar as costas no tronco duma velha árvore. A alegria da vitória ainda lhe permitiu anotar o sucesso na caderneta, depois a visão começou a enevoar, os braços tombaram, a esferográfica rolou e os sons da tarde esbateram-se transformando-se num nome: "Tad James...Tad James...". Estranho! Conhecia os escaladores nacionais desde Francisco Ataíde a André Neres, e os estrangeiros desde Bonati, Maestri, Rebbufat, aos mais modernos como Chris Sharma, Tribou e Chabot, mas "Tad James" não fazia parte dessas listas...quem se...ri...a...? Um ma...go...? MA...GO?! Interrogou-se confuso enquanto escorregava para a doce inconsciência do sono.


Boas Festas!
Um Ano Novo 2005 e seguintes cheios de projectos... concretizados!

MG


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