Páscoa: pormenores, pão e perfume
Conto-vos como foi o milagre:
Sabem como são as cidades, sabem como é a cidade: fumo de escapes, gente a dormir na rua, autocarros atrasados e sem conforto, mau atendimento nos locais públicos, trânsito caótico, pessoas de olhar vago, longínquo, como autómatos de filme de ficção científica, dejectos de animais pelo chão, pedras soltas nas calçadas, carros nos passeios, bancos e caixas Multibanco e publicidade por todo o lado em vez de jardins ou outros espaços convivenciais, enfim, uma espécie de manicómio. Face a isto, não temos muitas alternativas. Ou morremos, ou adormecemos como os tais autómatos, ou optamos pela terceira "alTREnativa", e temos de nascer outra vez, pela terceira vez (a primeira foi quando nascemos, a segunda quando sobrevivemos, e agora... esta): há quem lhe chame ressuscitar, houve um que até experimentou há dois milhares de anos, ou que pelo menos tentou, dizem que resultou, mas ainda hoje não se sabe o que lhe aconteceu. Talvez o que importa seja essa memória vaga do mito, esse relato de um episódio da história, ou da mitologia da humanidade, essa crença, para alguns, de que um ser se soltou da prisão, essa esperança em forma de símbolo. Andamos por aí, na cidade, e às vezes, por esta época a que chamam Páscoa (mas que pode ocorrer em qualquer altura, em qualquer estação do ano, em qualquer momento do dia ou da noite, porque a Páscoa é como o Natal, quando a gente quiser) os olhos abrem-se vagamente para sombras, vemos nuvens, passamos pelo meio de vultos, uma força invisível impele-nos para um lugar ainda não conhecido da cidade, um lugar onde a beleza habita. Abrem-se-nos os olhos e não vemos o todo, passamos pelas montras cheias de ovos de chocolate embrulhados em pratas coloridas mas já não somos sensíveis à monotonia do comércio, apercebemo-nos de pequenos pormenores: um azulejo muito belo, uma varanda de ferro forjado num rendilhado interessante, uma brisa no cabelo, a cor do céu, as formas das nuvens, o tom mutante do rio, um perfume de pão, um cheiro a coentros, um perfume de flores… de laranjeira! Nós, que nos pensávamos a sonhar, abrimos então os olhos, quando nos apercebemos que estes odores são demasiado reais para serem de um sonho. Estamos… em Sapadores!, uma das zonas mais abandonadas e degradadas da cidade, mas de mil padarias (só pode ser!) desprende-se o perfume de pão cozido que nos conforta as memórias desde que aparecemos neste planeta, e do mercado recolhemos pelo nariz a agradável presença dos frutos, dos legumes e das ervas de cheiro; saindo do mercado e atravessando a rua, entra-nos pelas narinas o aroma quente, terapêutico e milagroso das laranjeiras ali mesmo do outro lado da estrada, ao pé do pavilhão gimnodesportivo.
E foi assim. Este ano já tive a minha Páscoa, tudo o que vier a mais é um bem acolhido suplemento, mas a minha história de ressurreição já ninguém me tira. Também querem? Apanhem o 35 ou o 26 e vêm até Sapadores. Depois de passarem pelas sombras (sim, sim, é um percurso iniciático), pelas nuvens e pelos vultos, a coisa acontece. O caminho da ressurreição não é linear. Mas depois, podem entrar em qualquer pastelaria e comprar um ovo de Páscoa ficando a comê-lo devagarinho à vista do rio, lá em baixo.
Partilho convosco a pose que uma das laranjeiras, que as inúmeras flores fizeram para mim. O perfume, só mesmo experimentá-lo… Tenham uma Feliz Páscoa em qualquer canto da cidade, do país, do planeta ou do vosso coração.
Recebido de
Risoleta
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