sexta-feira, 1 de dezembro de 2006

A propósito da ecologia de que a PNL tanto fala...

EU SEI, MAS NÃO DEVIA de Clarice Lispector, (ou de como, se o deixarmos, a nossa vida se pode transformar num inferno, em que somos nós próprios a entrar, quase alegres, porque inconscientes disso) .


"Eu sei que nos acostumamos. Mas não devíamos.
Acostumamo-nos a morar em apartamentos de fundos, e a não ter outra vista que não as janelas em redor.
E porque não temos vista, logo nos acostumamos a não olhar lá para fora.
E porque não olhamos lá para fora, logo nos acostumamos a não abrir de todo as cortinas.
E porque não abrimos as cortinas logo nos acostumamos a acender cedo a luz.

E à medida que nos acostumamos, esquecemos o sol, esquecemos o ar, esquecemos a amplidão....
Acostumamo-nos a acordar de manhã sobressaltados porque está na hora.
A tomar o café a correr porque estamos atrasados.
A ler o jornal no autocarro porque não podemos perder o tempo da viagem.
A comer uma sanduíche porque não dá para almoçar.
A sair do trabalho porque já é noite.
A dormitar no autocarro porque estamos cansados.
A deitar cedo e dormir pesado sem termos vivido o dia.....

Acostumamo-nos a esperar o dia inteiro e ouvir ao telefone: hoje não posso ir.
A sorrir para as pessoas sem recebermos um sorriso de volta.
A sermos ignorados quando precisávamos tanto ser vistos.
Acostumamo-nos a pagar por tudo o que desejamos e o que necessitamos.
E a lutar, para ganhar o dinheiro com que pagar esses desejos e essas necessidades.
E a pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagaremos mais.
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar....
Acostumamo-nos à poluição.
Às salas fechadas, de ar condicionado e cheiro a cigarro.
À luz artificial.
Ao choque que os olhos sofrem com luz natural.
Às bactérias na água potável.

Acostumamo-nos a coisas demais, para não sofrermos....
Em doses pequenas, tentando não perceber, vamos afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá....

Se a praia está contaminada, molhamos só os pés e suamos no resto do corpo.
Se o cinema está cheio, sentamo-nos na primeira fila e torcemos um pouco o pescoço.
Se o trabalho está difícil, consolamo-nos a pensar no fim-de-semana.
E se no fim-de-semana não há muito o que fazer, deitamo-nos cedo e ainda ficamos satisfeitos porque temos sempre o sono atrasado.
Acostumamo-nos para não nos ralarmos com a aspereza, para preservar a pele.
Acostumamo-nos para evitar feridas.
Acostumamo-nos para poupar a vida. Vida que aos poucos se gasta, e que gasta de tanto se acostumar, e se perde de si mesma".

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